sexta-feira, 16 de maio de 2008

El Topo




Título original: El Topo
Ano de produção: 1970
Direção: Alejandro Jodorowsky
País: México

Estrelando: Alejandro Jodorowsky, Alfonso Arau, José Legarreta

Quando tinha certeza de que já havia visto de tudo em matéria de faroestes, eis que surge El Topo para confirmar que tudo nesse mundo, por mais velho que seja, pode ser recriado. A minha surpresa não era pequena, pois se pode dizer que em 1970 tudo de definitivo no western já havia sido lançado pelas mãos de John Ford, Howard Hawks, Delmer Daves, Anthony Mann, Sergio Leone, Sam Peckinpah e tantos outros, e naquele período existia certo consenso em considerar o gênero como em franco declínio. Pois Alejandro Jodorowsky utilizou os alicerces do gênero mais americano do cinema para reinventá-lo no deserto mexicano, usando e abusando de sua criatividade privilegiada. O filme transborda imaginação, como a maioria das películas de Jodorowsky, uma vez que seus filmes são quase como se Fellini ou Buñuel se aventurassem em gêneros os quais eles nunca quiseram se arriscar.



El Topo já começa com uma forte carga simbólica, com o personagem-título (interpretado pelo próprio Jodorowsky) montado em seu cavalo com seu filho pequeno despido (na melhor tradição ibérica das duplas de cavaleiros andantes) e com um guarda-chuva sob o sol escaldante do deserto. O pai ordena ao menino que enterre na areia seu primeiro brinquedo e o retrato de sua mãe, como um rito de passagem para o mundo adulto. El Topo, o personagem central, é assim chamado por que é o nome de uma criatura que escava na terra em busca de sol, apenas para se cegar quando chega à superfície. Ainda assim, o visual e o estilo do personagem podem nos primeiros minutos de filme enganar o espectador desprevenido levando-o a acreditar que está por assistir um faroeste convencional: o protagonista é um pistoleiro todo vestido de negro, chapéu e arma na mão distribuindo justiça nos lugares por onde anda. O destino o leva a um mosteiro, onde um coronel e seus capangas maltratam, humilham e seviciam os franciscanos, num cenário de horror, loucura e grotesco inacreditável, apenas suavizado pelo humor negro e cruel que acompanha essas seqüências delirantes. Com a intervenção de El Topo, os franciscanos fuzilam os marginais, o coronel é castrado, e o pai abandona o menino em troca de uma figura feminina que representará a sua perdição. Ao atravessarem o deserto, a mulher o desafia para que ele encontre e derrote um por um os quatro grandes Mestres das Armas. Cada um desses mestres é eliminado por El Topo, mas o interessante é que cada um deles à medida que o protagonista os encontra possui menos posses e materialismos que o anterior, ao ponto de o último dos Mestres estar completamente despojado de qualquer vicio desse mundo. Ao morrer nos braços de El Topo, este é que sucumbe. A mulher já não lhe pertence mais, entregue ao fascínio por outra pistoleira que cruzara os seus caminhos, e mortalmente ferido El Topo é recolhido por novos personagens que aparecem em cena.



Depois de muitos anos em coma, o protagonista acorda numa caverna onde vive aos cuidados de um grande número de deformados e mutilados, cujas figuras remetem diretamente ao clássico de terror Freaks (1932). A caverna é quase que uma releitura do mito de Platão, com os seres que nela habitam (todos frutos de longos incestos do povo da cidade próxima), não podendo sair de lá, e desejosos de verem a luz do sol e conhecer o mundo exterior (como o próprio significado do nome do protagonista). Este toma a decisão de libertá-los, e se dirige ao povoado acompanhado de uma das deficientes para concretizar seus propósitos. Essa ruptura é verdadeiramente um choque muito grande, por que agora El Topo passou por uma radical transformação e já não carrega armas e nem está disposto a usar da violência, e com um visual totalmente diferente, careca, purificado e em trajes simples e miseráveis, está mais para um profeta messiânico disposto a libertar seus discípulos do que para o anjo vingador e demoníaco que antes encarnara. Havia, finalmente, aprendido com os Mestres que derrotara, despojando-se de todas as suas vaidades pessoais e materiais e adquirido grandes doses de humildade e simplicidade, chegando ao ponto de mendigar utilizando-se de seu trabalho de artista de rua (onde Jodorowsky dá vazão a sua experiência com mímica, cujo aprendizado se deu com o grande Marcel Marceau). Aliás, essa metade final lembra muito alguns aspectos do primeiro longa do diretor, Fando y Liz, que também descrevia a jornada de um homem acompanhado de uma deficiente, sem que isso signifique em momento algum que Jodorowsky caia em eventuais repetições em sua obra. Há também outros trechos em que o humor crítico, feroz e impiedoso nos desperta um riso por vezes incômodo porém inevitável, como na cena em que um negro é abusado sexualmente por um grupo de mulheres ao mesmo tempo em que é acusado por elas de assédio, ou a tragicômica seqüência da roleta-russa dentro de uma igreja. São momentos que servem para levar à tona hipocrisias e injustiças que ocorrem em qualquer circulo social ou religioso.



O que nos fascina na obra de Jodorowsky é a habilidade de usar a escassez de recursos como um meio de invenção, e a coragem de mostrar alucinadamente coisas que pouquíssimos outros cineastas fariam, sem que os seus exageros visuais ou temáticos soem como gratuitos ou desnecessários. É com certeza um dos diretores que mais fugiu do convencional, das amarras do cinema tradicional. El Topo utiliza-se praticamente de todas as convenções dos westerns, mas estupra cada clichê do gênero para que este ressurja novo e original como seu cinema: grotesco, delirante, feio e belo. Nenhum outro faroeste se compara a este (sem que isso o torne, necessariamente, o melhor de todos). Vistos na época do lançamento como frutos de uma febre psicodélica, só agora os filmes de Jodorowsky vão aos poucos ganhando o reconhecimento que sempre mereceram. Uma prova de que o cineasta estava pelo menos uns trinta anos à frente do seu tempo. Pena que o diretor ainda não conseguiu concretizar a sonhada continuação de sua obra-prima, Os Filhos de El Topo, que transcorreria depois do apocalipse nuclear, quando toda a terra se torna um deserto, exceto a ilha onde o corpo de El Topo fora cremado, onde seus dois filhos cumprem um destino trágico que lhes era reservado. Há quem diga que o projeto só não saiu do papel porque Jodorowsky recusou-se a escalar atores famosos nos papéis centrais, preferindo usar os seus próprios filhos como protagonistas. O certo é que a não-realização dessa seqüência é uma das provas cabais de o quanto El Topo ainda é subestimado na história do cinema.

Vlademir

Um comentário:

Filipe Melo disse...

grande texto. parabéns.